A Prefeitura de Vitória da Conquista encaminhou à Câmara Municipal o Projeto de Lei nº 35/2025, que cria a LotoConquista, a nova loteria pública municipal. A proposta, assinada pela prefeita Ana Sheila Lemos Andrade, promete reforçar a arrecadação e destinar parte dos lucros para assistência social, saúde, esporte e cultura.
Uma alternativa teórica para aumentar receitas
Na teoria, trata-se de uma alternativa para aumentar as receitas municipais sem elevar impostos. No entanto, na prática, a iniciativa levanta uma pergunta incômoda: é papel do poder público incentivar o jogo de azar em nome do desenvolvimento social?
A “aposta” na arrecadação
O projeto autoriza a exploração de todas as modalidades lotéricas previstas em lei federal, por meio de gestão direta ou concessão privada, com prazo de até 15 anos. Além disso, a Secretaria Municipal de Finanças e Execução Orçamentária será responsável por fiscalizar e gerir os recursos.
A proposta também prevê a divulgação periódica da arrecadação e dos lucros, um gesto de transparência que soa bem no papel — porém, historicamente, enfrenta sérios desafios de execução em administrações públicas.
A Prefeitura argumenta que a LotoConquista vai gerar empregos e movimentar a economia local. Ainda assim, a pressa com que o projeto foi apresentado — em regime de urgência — chama atenção. Portanto, é legítimo criar um novo serviço público de apostas sem um amplo debate sobre os impactos sociais e psicológicos que essa política pode trazer?
O outro lado da moeda: o vício que destrói vidas
Os números ajudam a dimensionar o risco. Segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), da Unifesp, 10,9 milhões de brasileiros já apresentam sintomas de dependência em jogos de aposta, e cerca de 1,4 milhão sofrem de ludopatia, um transtorno reconhecido pela Organização Mundial da Saúde.
Mais preocupante ainda, 38,6% dos apostadores no Brasil estão em algum nível de risco, e entre adolescentes de 14 a 17 anos, o índice chega a 55,2%. O SUS já registrou quase 4 mil atendimentos por vício em jogos entre 2022 e 2025, concentrados em São Paulo e Rondônia — números que crescem a cada ano.
As consequências vão muito além das perdas financeiras. Por exemplo, dívidas impagáveis, destruição de lares, depressão, isolamento e até tentativas de suicídio estão entre os efeitos mais graves do vício. A promessa de “mudança de vida” que o jogo oferece acaba, para muitos, em ruína emocional e econômica.
Jogar com o social
Ao propor uma loteria municipal, o governo de Vitória da Conquista parece ignorar esse contexto. Embora a mensagem enviada à Câmara fale em transparência, geração de renda e desenvolvimento, não há uma única linha sobre prevenção ao vício, campanhas de conscientização ou políticas de apoio aos dependentes.
O discurso de “financiar políticas públicas” com recursos do jogo soa, no mínimo, contraditório. Afinal, o mesmo cidadão que perderá dinheiro apostando é aquele que, depois, dependerá dos serviços sociais que o poder público promete reforçar com essa arrecadação.
É uma conta que não fecha: um modelo em que o sofrimento de alguns paga as políticas para outros.
Entre a esperança e a ilusão
A LotoConquista pode, sim, representar uma nova fonte de receita para o município — mas também pode abrir um perigoso precedente. Ao normalizar o jogo como ferramenta de gestão pública, o poder municipal transforma a “sorte” em política de Estado.
E quando o Estado passa a contar com o azar do cidadão para equilibrar suas contas, algo parece estar fora do lugar. Vitória da Conquista precisa de políticas que estimulem a autonomia, a educação e o emprego — não de bilhetes raspáveis que prometem o que raramente entregam.