Nas últimas semanas, duas notícias chamaram atenção por abordarem, sob óticas diferentes, a relação entre o poder público e os jogos de azar.
De um lado, o governo federal publicou uma norma para impedir beneficiários do Bolsa Família e do BPC de fazer novos depósitos em contas de apostas online.
De outro, a Prefeitura de Vitória da Conquista (BA) apresentou um projeto de lei para criar a LotoConquista, uma loteria municipal voltada à arrecadação de recursos para saúde, cultura, esporte e assistência social.
À primeira vista, as medidas parecem caminhar em direções opostas. Enquanto Brasília busca proteger famílias vulneráveis, a administração municipal aposta em usar o próprio jogo como fonte de receita.
Essa tensão revela um ponto importante: qual é o verdadeiro papel do Estado diante das apostas e da vulnerabilidade social?
A norma federal: proteção e prevenção
A decisão do governo federal tem um objetivo claro: impedir que o dinheiro destinado à sobrevivência das famílias seja desviado para apostas de risco.
A norma exige que as empresas de bets consultem uma base de dados oficial e bloqueiem contas de beneficiários, devolvendo os valores em até três dias.
Em outras palavras, o Estado reconhece que, para quem depende de benefícios sociais, o jogo não é diversão.
É um perigo real de endividamento e exclusão financeira.
A LotoConquista: arrecadação com sabor de contradição
A proposta da LotoConquista vem com outro discurso: o de inovar na arrecadação municipal sem aumentar impostos.
A prefeitura promete destinar parte da arrecadação para financiar políticas públicas.
Em teoria, a ideia soa promissora. Afinal, quem não gostaria de ver mais recursos para a cultura ou a saúde?
Porém, há uma contradição sutil: o mesmo Estado que tenta proteger o cidadão do vício em apostas passa a atuar como operador do jogo.
É como se o poder público dissesse: “não aposte no privado, aposte conosco.”
Assim, a fronteira entre incentivo e proteção se torna perigosa e confusa.
Quando o jogo deixa de ser diversão
Os riscos do vício em apostas não são teóricos.
No Ceará, uma mulher tirou a própria vida após acumular dívidas em plataformas de cassino online.
No Maranhão, um jovem perdeu a herança da mãe — cerca de R$ 50 mil — no chamado “Jogo do Tigre” e também cometeu suicídio.
Esses casos mostram que o jogo pode deixar marcas profundas.
Endividamento, vergonha, isolamento e desespero formam um ciclo difícil de romper.
Na Austrália, o problema é tão grave que especialistas estimam uma morte por dia ligada a vícios em apostas.
Esses números reforçam uma realidade incômoda: o vício em jogos é mais do que uma questão moral.
É um problema de saúde pública que exige atenção, prevenção e acolhimento.
Aposta pública, riscos privados
Mesmo quando é legalizado, o jogo traz efeitos colaterais.
O endividamento familiar, a perda de renda e o desequilíbrio emocional são consequências frequentes.
Em cidades com maior vulnerabilidade, como Vitória da Conquista, os danos podem ser ainda maiores.
Além disso, é essencial que haja transparência e controle rigoroso sobre a arrecadação e o destino dos recursos.
Sem isso, o risco de má gestão e falta de clareza aumenta.
Portanto, mais do que criar uma nova fonte de renda, é preciso garantir que ela seja ética, responsável e fiscalizável.