A sanção presidencial que proibiu o uso da linguagem neutra na administração pública reacendeu um debate que o país inteiro já conhece. No entanto, o que poderia ser uma discussão objetiva sobre normas, comunicação e administração pública virou um espetáculo conceitual depois que um influencer não binário publicou um vídeo classificando a decisão como uma “tentativa do Estado de ilegalizar identidades” e até como um “ato ontológico”.
O problema não está em discordar da lei. O problema está no exagero retórico que transforma uma questão administrativa em uma batalha metafísica.
A lei e o que ela realmente diz
A nova lei proíbe que documentos oficiais, materiais didáticos e comunicações da administração pública utilizem linguagem neutra — mantendo o português normativo como padrão. Não impede ninguém de falar, se expressar, criar conteúdo ou usar linguagem neutra na vida privada. Também não criminaliza identidades, nem proíbe a existência de pessoas não binárias.
É uma lei que regula o Estado, não os indivíduos.
Mas o influencer transformou isso em um drama civilizatório.
1. Não existe ilegalização de identidades
Identidade de gênero não depende de grafia oficial. O Estado não está dizendo quem o cidadão é — está padronizando documentos, como faz com datas, abreviações, pronomes de tratamento e regras ortográficas.
2. Linguagem neutra não nasceu “nas margens” como resistência política
Ela é um fenômeno contemporâneo, urbano, digital, impulsionado principalmente por redes sociais e debates acadêmicos. É legítima como expressão pessoal, mas não é um idioma estruturado, testado e compreendido pela população inteira — pré-requisito básico para virar regra administrativa.
3. A crítica transforma burocracia em opressão ontológica
Chamar uma regra gramatical de “arma do sistema” é exagero. A administração pública precisa de clareza, universalidade e compreensão ampla. Isso não é opressão — é funcionamento mínimo de Estado.
4. Falta senso de proporção
Ao longo do vídeo, o influencer trata a lei como se fosse um ataque à existência de pessoas não binárias. Mas a lei não toca em direitos civis, nome social, identidade de gênero, acesso a serviços ou proteção institucional. Trata apenas de comunicação oficial.
O debate merece mais racionalidade e menos misticismo político
A sanção da lei pode ser criticada. Pode-se argumentar que é conservadora, que limita avanços linguísticos, ou que poderia ter sido construída de outra forma.
Mas transformar tudo isso em um ato de “negação da humanidade”, “ficção binária” ou “desespero estatal” apenas enfraquece o debate e distancia ainda mais a discussão do que realmente importa.
Enquanto uma parte do país tenta discutir políticas públicas, outra prefere poetizar sobre “corpos desobedientes” e “territórios coloniais”.
O Brasil precisa de diálogo, não de discursos que tratam gramática como guerra existencial.

