Uma publicação recente do advogado Jeffrey Chiquini chamou atenção nas redes sociais. Ele apontou uma aparente contradição nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo ele, no informativo nº 864/2025, o tribunal determinou que planos de saúde custeassem cirurgias de feminilização da voz, mas dispensou a obrigação de fornecer medicamentos essenciais para gestantes com trombofilia.
De um lado, temos um procedimento complexo, caro e ligado à afirmação de identidade de gênero. De outro, um tratamento vital para proteger a vida de mães e bebês em situações de risco. Essa comparação revela uma questão preocupante: quais critérios o Judiciário usa para intervir nas relações privadas de saúde suplementar?
A inversão de prioridades
Não se trata de negar a importância de políticas inclusivas nem de reduzir o sofrimento de pessoas trans. O ponto é outro: como o Judiciário pode considerar essencial a cobertura de uma cirurgia de feminilização da voz, mas relativizar a necessidade de medicamentos comprovadamente indispensáveis para gestantes em risco?
Essa inversão expõe o problema do ativismo judicial. Quando juízes tentam preencher lacunas do legislador ou da agência reguladora, acabam criando obrigações desproporcionais. Além disso, geram insegurança jurídica.
O papel das instâncias técnicas
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) define, a partir de critérios técnicos, quais procedimentos e medicamentos devem integrar o rol de cobertura obrigatória. A cada revisão, são analisados estudos de custo-efetividade e impacto orçamentário.
Quando o Judiciário se antecipa ou substitui esse processo, abre espaço para distorções. Por exemplo, obriga planos de saúde a arcar com procedimentos sem avaliação técnica aprofundada, enquanto nega cobertura de medicamentos que deveriam ter prioridade absoluta por envolver risco de vida.
Consequências práticas
Essas decisões não são neutras. O aumento das despesas judiciais pressiona o custo dos planos de saúde, encarece mensalidades e dificulta o acesso da população em geral. Além disso, cria um cenário em que cada caso depende mais da sensibilidade de um magistrado do que de uma política pública clara e previsível.
No fim das contas, o que deveria ser exceção — a intervenção judicial — tem se tornado regra. Como observa Jeffrey Chiquini, nem sempre o resultado final reflete lógica ou coerência.
Entre a vida e a ideologia
É simbólico que, no mesmo informativo, o STJ tenha estabelecido posições tão díspares. De um lado, assegura um procedimento ligado à identidade de gênero; de outro, afasta a cobertura de medicamentos que poderiam salvar vidas em gestações de risco.
Mais do que uma questão de saúde suplementar, o episódio revela o desafio de um Judiciário que, ao atuar como legislador positivo, transforma convicções ideológicas em obrigações contratuais. Nesse processo, a lógica da proteção à vida — que deveria ser o valor supremo — acaba relegada a segundo plano.
 
									 
					

